Em Curitiba surgiu o Parque João Paulo II e um monumento a esse papa, lembrando à cidade o eminente polonês e ao mesmo tempo fortalecendo o sentimento de valor da coletividade polônica. Da mesma forma na Polônia, e de forma maciça, surgiram monumentos, placas comemorativas e sinalizações de lugares relacionados com a presença de João Paulo II. Trata-se de um fenômeno que tem, naturalmente, a sua dimensão religiosa, para cuja análise não me sinto competente e que não vou abordar neste artigo. No entanto tenho a impressão de que, além dos sentimentos religiosos, esse fenômeno expressa também a busca do fortalecimento das coletividades locais, que se observa na Polônia a partir de 1989.
O comunismo igualou a nossa vida. Em todas as cidades surgiam prédios residenciais idênticos, nos restaurantes era servida em todos os lugares uma alimentação semelhante e todos os bondes eram pintados nas cores vermelha e amarela – como em Varsóvia. Após 1989 as coletividades locais alcançaram uma liberdade maior e muitas vezes se animaram. Passaram a enfatizar a sua autonomia. Queriam atrair os visitantes, ou turistas, com a própria originalidade. Muitas vezes queriam ser algo específico – não apenas uma cidade que na realidade possui o seu nome, mas que, na prática e contrariamente à tradição histórica, em pouco se distingue das outras.
Essa busca de destaque da originalidade seguiu diversos caminhos. Às vezes eram recriadas tradições culinárias ou costumes locais. Os bondes eram pintados em cores apropriadas a determinada localidade. Procurava-se fortalecer, construir ou reconstruir a tradição de eventos artísticos (p. ex. festivais de música) e esportivos próprios de determinada cidade. Eram organizados jubileus das cidades, comemorações dos aniversários locais, “dias dos lugares”. Através de monumentos ou placas comemorativas lembravam-se as minorias nacionais que outrora viveram em determinada área. Eram construídos monumentos, não apenas de heróis nacionais, mas de personalidades significativas na história local. Muitas vezes eram assinalados locais de memória de acontecimentos que ocorreram na localidade, mas que tinham significado na história nacional. Com freqüência tratava-se de eventos que testemunhavam a contribuição local para acontecimentos nacionais, por exemplo aqueles relacionados com as guerras.
Na minha opinião, a conservação e a criação – no espaço simbólico – de memoriais relacionados com a pessoa de João Paulo II serve também, numa de suas dimensões, para enfatizar o orgulho, a especificidade e a originalidade das diversas coletividades locais. Elas destacam que tiveram contato com o papa e/ou que o querem homenagear. Ocorre uma “localização” do culto do papa, que em certo sentido constitui um paradoxo, visto que a religião e o ideal do papado possuem uma vocação universal. No entanto vale a pena lembrar que o culto de Nossa Senhora, que pela essência da religião também é um culto de vocação universal, assume igualmente raízes locais (Nossa Senhora de Czestochowa, Nossa Senhora de Gietrzwald, Nossa Senhora de Guadalupe, Nossa Senhora Aparecida...). É verdade que isso não acontece com o culto de Cristo. A explicação disso – a meu ver – é a seguinte: na visão religiosa, Nossa Senhora funciona como consoladora, e as pessoas geralmente necessitam de consolo “aqui e agora”. Da mesma forma, João Paulo II funciona na Polônia como um bom pai e protetor. Essa é a camada fundamental da gênese do seu culto na dimensão leiga.
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Em alguns casos, o papel do culto do papa para assinalar a individualidade da cidade e para o fortalecimento da posição desse local é tanto evidente como excepcional – como em Wadowice, ou seja, na cidade natal do papa. A título de brincadeira, e sem diminuir a dimensão séria da questão, alguém poderia dizer que graças a João Paulo II Wadowice “ganhou o grande prêmio da loteria”. Antigamente poucas pessoas ouviam falar dessa cidade, mesmo na Polônia, quanto mais no exterior. O lugar defrontava-se, como muitas outras localidades, com uma série de dificuldades. Em certo sentido era um “cafundó”. Hoje o lugar recebe excursões que vêm de muitos países, a cidade mudou a sua aparência, e a casa onde nasceu o papa tornou-se um valioso monumento histórico. Algumas solenidades são dali transmitidas pela televisão para toda a Polônia e para mais longe, e os doces locais, que o papa mencionou num dos seus diálogos com os fiéis, tornaram-se famosos. Tudo isso não significa, naturalmente, que Wadowice não tenha hoje diversos problemas. Naturalmente, a cidade os têm – visto que assim é a natureza da vida. Contudo tenho a impressão de que a situação da cidade e o estado de espírito da coletividade local mudaram radicalmente.
Uma outra dessas localidades é Cracóvia. Na verdade seria difícil dizer que essa cidade precisasse enfatizar a sua especificidade ou originalidade. Diferentemente de Wadowice, era amplamente conhecida, em primeiro lugar como uma cidade grande, e – depois – como uma cidade historicamente excepcional. Mesmo assim a pessoa do papa, que foi arcebispo local, acrescentou mais um “tijolinho” ao formato individual da cidade. A famosa janela do palácio dos arcebispos de Cracóvia, de onde o papa conversava com as pessoas durante as suas visitas, tornou-se um lugar comparável em importância a diversos monumentos históricos da cidade. Em todo o caso os turistas aproximam-se dela em massa.
Provavelmente todas as coletividades locais da Polônia com as quais o papa teve contato durante as suas peregrinações assinalaram ou estão assinalando os lugares que ele visitou. São lugares de natureza muito diversificada, e diversas são também as formas com que a presença do papa é assinalada. Em Varsóvia, dentre muitos desses lugares, existe a Praça Pilsudski, onde o papa fez uma celebração durante a sua primeira peregrinação à Polônia (1979). A memória desse lugar, embora evidente e não necessitando de especial fortalecimento, foi no entanto confirmada pelo fato de que justamente ali se realizaram as cerimônias de sepultamento do cardeal Estêvão Wyszynski e, a seguir, após a instauração do estado de sítio, porque ali as pessoas depositaram um cruzeiro de flores (que algum tempo depois as autoridades removeram com o pretexto de reforma do piso).
Posteriormente, o significado desse lugar como relacionado com João Paulo II foi fortalecido porque ali se realizavam celebrações e cerimônias nos dias de luto após a sua morte. Atualmente, no lugar da Praça Pilsudski onde em 1979 se encontrava o altar do papa, foi colocada no pavimento uma placa:
Neste lugar
no dia 2 de junho de 1979
o Santo Padre
JOÃO PAULO II
celebrou uma Missa
e
no dia 31 de maio de 1981
o Primaz da Polônia
cardeal Estêvão WYSZYNSKI
iniciou a partir daqui
o seu último caminho
Ao lado da placa as pessoas colocaram uma cruz de madeira decorada de flores.
Entre os outros lugares assinalados em Varsóvia como relacionados com a memória do papa, podemos mencionar por exemplo o novo prédio da Biblioteca da Universidade de Varsóvia, onde foi colocada uma placa que informa a respeito da visita do papa e da bênção do prédio por ele realizada. No convento em que se deteve a caminho de Cracóvia a Roma, para participar do conclave, também foi colocada uma placa com essa informação.
Do ponto de vista em análise, é muito interessante Zakopane e a sua redondeza. Em Cyrhla, um lugar de paisagem excepcionalmente bela, foi colocada uma pedra com a informação de que por ali passou João Paulo II. Em Wiktorówki, perto de Rusinowa Polana, na capela local, foi localizada uma placa informando que João Paulo II havia mencionado esse santuário. Na planície Chocholowska, foi colocada uma cruz em Siwa Polana, onde o papa desceu do helicóptero. Nesse mesmo vale, no lugar conhecido por Niznia Brama, foi pregado à rocha um medalhão dedicado ao papa e foi localizada uma placa no abrigo em forma de barraco de madeira, que ele também visitou. Nos montes Tatra ocidentais foi assinalado o “caminho do papa”, seguindo a rota pela qual o papa fez um passeio (da planície Chocholowska até a planície Jarzabcza). Tais roteiros turísticos “papais”, nem sempre necessariamente papais no sentido estrito, mas que assim são chamados, foram assinalados em diversas regiões da Polônia. Entre Cracóvia e Wadowice foi organizada uma espécie de roteiro ferroviário do papa. Um trem especial passa pelo trecho assinalado e detém-se em lugares significativos do ponto de vista da vida do papa antes de ter assumido a Sé de Pedro. Por sua vez, por exemplo na margem do lago Wigry foi assinalado o lugar de onde o papa iniciou um passeio pelo lago, e o barco por ele utilizado é preservado como uma lembrança.
Muitas localidades e regiões fortalecem a memória a respeito de vínculos, ainda que ocasionais, com João Paulo II antes ainda de tornar-se papa. Em Limanowa, no pedestal do monumento de João Paulo II, foi registrado que Karol Wojtyla coroou uma imagem santa local ainda como metropolita de Cracóvia. Nos caminhos aquáticos pelos quais o futuro papa passeou em caiaques com os estudantes, foram assinalados os lugares onde ele costumava acampar. Nos montes Bieszczady, em Tarnica, encontra-se hoje um cruzeiro lembrando que ali esteve o futuro papa. Igualmente na região de Babia Góra, no desfiladeiro Krowiarki, foi marcada com uma placa uma das excursões de Karol Wojtyla, e em Zubrzyca Górna foi localizada uma placa na casa onde ele se alojou, quando, ainda como jovem operário, trabalhou na construção de uma estrada.
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Algumas localidades aproveitaram os elementos dos altares pontifícios para a construção do culto do papa, ao mesmo tempo – como acredito – para ligar a tradição própria com a tradição do papa. Na já mencionada Zakopane, o altar pontifício do estádio de Krokwia foi removido para o Santuário de Nossa Senhora de Fátima em Krzeptówki.A relação da universalidade da religião e da universal essência do papado com a tradição local é simbolizada ali pelo material do qual foi executada a ara do altar (granito) e a sua base, esculpida em forma de dois carneiros negros, abundantemente criados naquela região. Por outro lado, à localidade denominada Jastarnia, na península de Hel, foi transferida à igreja dos pescadores uma imagem de São Pedro (pescador!) do altar pontifício no qual o papa conduziu uma celebração em Sopot. Nesse tipo de iniciativas, leva-se muitas vezes em consideração a especificidade do lugar ou da igreja em questão. O fato de o busto de João Paulo II ter sido colocado na Catedral Campal do Exército Polonês em Varsóvia lembra não apenas que o papa rezou nesse santuário, mas também que foi filho de um oficial do exército. Foram instaladas ali duas placas. Uma delas anuncia:
O Santo Padre
João Paulo II
rezou
na Catedral Campal
do Exército Polonês
9 de junho de 1991
E numa outra foi colocada esta dedicatória:
Ao filho de um oficial
do Exército Polonês
por ocasião do jubileu de ouro
da sua ordenação sacerdotal
o Exército Polonês
A. D. 1996
A placa localizada numa parede da igreja acadêmica de S. Ana, também em Varsóvia, assinala que nesse lugar o papa se encontrou com a juventude.
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Diversas vezes a recordação das visitas do papa é adicionada aos monumentos existentes, especialmente àqueles que testemunham o martirológio nacional. Junto ao monumento do “Junho de Poznan” (1956), foi colocada uma pedra, confirmando que João Paulo II rezou nesse lugar:
O Santo Padre João Paulo II rezou aqui no dia 3 de junho e 1997, cumprindo o seu desejo de 20 de junho de 1983, quando as autoridades da época lhe negaram essa possibilidade.
Uma informação semelhante a respeito da oração do papa foi localizada junto ao túmulo do pe. Jerzy Popieluzko em Varsóvia.
Há ainda um outro caso em que uma espécie de relacionamento com a pessoa do papa ocorreu quando foi conferida a João Paulo II a cidadania honorária da cidade – como em Kamien Pomorski, onde essa honraria foi conferida ao papa “em reconhecimento à sua autoridade de Santo Padre” e “em alusão à herança histórica de Kamien Pomorski como sede episcopal na Pomerânia Ocidental” (a respeito do que informa uma placa localizada numa parede do paço da cidade).
Em alguns monumentos, como p. ex. no monumento de Juliusz Slowacki em Varsóvia (naquele que substituiu o monumento de Dzierzynski), ou no monumento do Estado Subterrâneo em Varsóvia, foi colocada uma informação a respeito da bênção da pedra fundamental pelo papa.
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Concluindo, convém repetir que o fenômeno do realce conferido às lembranças do papa cumpre variadas funções. Resulta de premissas religiosas, da afeição de muitas pessoas a João Paulo II, e talvez possa ser também comparado ao desejo de diversas comunidades de possuir as santas relíquias. Mas, pelo menos secundariamente, o destaque da tradição papal sirva também à atual construção de uma tradição local, um dos elementos da qual torna-se a memória da visitas do papa, dos contatos com Karol Wojtyla antes ainda de ele tornar-se papa ou simplesmente da própria afeição à sua pessoa e à sua memória.
Marcin KULA*
* Marcin Kula é professor da Universidade de Varsóvia e da Escola Superior de Empreendedorismo e Administração Leon Kozminski, em Varsóvia, e membro do conselho consultivo da revista Polonicus.
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