O início da colonização polonesa em Águia Branca - ES na descrição do pe. Inácio Posadzy*


 

À mais jovem colônia

 

De Colatina viajo às novas colônias polonesas em Águia Branca. Inicio a visita às colônias polonesas no Espírito Santo por Águia Branca, que até então nunca havia recebido a visita de um padre.

Águia Branca é a mais jovem colônia polonesa no Brasil, que surgiu graças aos empenhos da Sociedade Colonizadora de Varsóvia. Essa sociedade é uma instituição fundada com o objetivo de ativamente levar a cabo os trabalhos de colonização em áreas que as autoridades de Varsóvia reconhecem como adequadas.

Enviado por essa sociedade, esteve no Brasil em1927 o seu meritório presidente, o Sr. Gliczynski, com o objetivo de examinar as condições da colonização. Na ocasião predominava a opinião de que a emigração polonesa devia ser encaminhada principalmente aos quatro estados meridionais do Brasil, isto é, Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná e São Paulo, visto que nesses estados o polonês tem as melhores condições de se adaptar às condições climáticas. No entanto esses estados começaram a apresentar condições muito desfavoráveis, o que dificultou um acordo.

Por isso o Sr. Gliczynski viajou ao Espírito Santo e a Minas Gerais e deu início às negociações. Receberam de maneira especialmente favorável as propostas do presidente da sociedade as autoridades estaduais do Espírito Santo, visto que estavam interessadas no povoamento de áreas despovoadas no estado. Além disso, já conheciam os poloneses como bons colonizadores, pois residia ali um bom número deles proveniente da imigração mais antiga.

Em outubro de 1923 ambas as partes assinaram um acordo. O governo espírito-santense entregou à Sociedade 50.000 hectares de mata virgem ao norte do Rio Doce – com o direito de ali assentar 1.800 famílias agrícolas no decorrer de oito anos. Esse acordo foi ratificado pelo Ministério do Trabalho e da Assistência Social em Varsóvia, no dia 25 de fevereiro de 1929.

O primeiro transporte de imigrantes chegou ali há um ano. Os colonos se dirigiram ao interior da selva e se estebeleceram nas margens dos rios Pancas, São José e Claro. Deram à primeira colônia o nome de Águia Branca, para demonstrar que estavam iniciando a sua difícil tarefa à sombra desse símbolo polonês.

Seguiram-se outros transportes, trazendo camponeses poloneses das regiões de Vilnius, Lomza, Lublin e Stanislawów. Talvez lá no país natal não houvesse pão suficiente, ou talvez quisessem tentar a sorte além do oceano. E assim, encontram-se ali hoje cerca de 100 famílias polonesas e ucranianas.

Por isso é com interesse que me dirijo àquela região. Faz-me companhia o Dr. Biernacki, médico da colônia.

Passamos pelo Rio Doce. Esse rio tem cerca de 500 m de largura. Foi construída sobre ele uma nova ponte de concreto armado. Parece que ainda não está terminada, porque se vêem tábuas espalhadas e as proteções laterais não estão prontas. Até se sente tonteira quando se olha da ponte para a impetuosa corrente de água lá embaixo. É preciso ter uma calma verdadeiramente brasileira para evitar uma catástrofe. Há pouco tempo caiu dessa ponte uma mulher.Ela queria desviar-se de um carro, afastou-se para muito perto da margem e – aconteceu a desgraça. Antes disso já havia caído na água um homem montado a cavalo.

Entramos na mata virgem. À beira da estrada encontramos de vez em quando pequenas povoações. Os seus moradores derrubam as altas árvores. Outros queimam as derrubadas já secas. Depois andam em meio aos troncos queimados e lançam diretamente na cinza sementes de milho e arroz. Vem a chuva, e a derrubada logo se torna verde. E depois vem uma colheita de encher os olhos. O solo está descansado, e a cinza sobre ele é um valioso fertilizante.

Ao anoitecer chegamos a Aldeamento dos Índios. Trata-se de uma reserva indígena. O governo brasileiro delimitou ali dois mil hectares para os restos da outrora forte tribo dos aimorés. São realmente os restos deles: 12 homens, 7 mulheres e 8 crianças.

Há quinze anos eles ainda eram cerca de cinco mil, mas uma epidemia de gripe dizimou-os quase por completo. Foi-lhes oferecido tratamento médico, mas eles recusaram. Houve também uma proposta de isolar os doentes, mas os índios se revoltaram. Além disso, menosprezandoa doença, buscavam nas frias correntes montanhosas o alívio para a febre.

Eles estão com os dias contados. Aqueles que sobraram apreciam acima de tudo a cachaça, em cujo consumo não conhecem medida. De nada adiantam os conselhos. De nada servem também as melhores intenções do governo. Com recursos do Estado é mantido para eles um professor e lhes é são assegurados alimentação, vestuário e residência. Mas tudo em vão.

Converso com eles. Eles falam um pouco o português. Perguntam logo se não trago presentes para eles. Entrego a cada um deles uma medalha com Nossa Senhora de Czestochowa, que eles olham com admiração e depois penduram na mão direita em finas fibras de cipó.

Pela fotografia tenho que pagar separadamente, porque – como que obedecendo a um comando – eles exclamam: grin, grin – dinheiro! Eles se aprumam, tiram o pó da roupa, fazem pose.

Pernoitamos na casa do “amansador” deles, o Sr. Luís Alves Viana, um funcionário brasileiro a cujos cuidados estão confiados os índios. Ele tem à sua disposição uma residência separada, com três camas para visitas.

Encontramo-nos com o mineralogista alemão Richard Schaller, que ali procura minérios valiosos. Ele nos contou que no dia anterior havia estado na Montanha da Morte, para onde foi conduzido por dois índios. Durante a caminhada eles lhe contaram muitas histórias sobre essa montanha.

À noite anda por lá um vulto preto, em cujo rosto há fogo ardendo. É a alma do chefe deles Niingakole, que após a morte não pode encontrar a paz. Niingakole apaixonou-se por Bingre, filha do cacique da tribo vizinha. Por isso foi condenado à morte. Ele foi lançado ao abismo do cume da Montanha da Morte.

O Sr. Schaller deu a entender que perto do cume havia encontrado veios de prata.

Pela manhã montamos nos burros e pusemo-nos a caminho. Andamos por uma estreita picada no mato, aberta com foices e facões em meio ao emaranhado de cipós, arbustos e taquaras. Essa planta, enroscando-se nas árvores, forma fantásticas grinaldas.

Acima do matagal elevam-se diversas espécies de árvores, formando concentrações de vegetação eternamente verde, das mais maravilhosas que existem no mundo. Os ipês justamente estavam florescendo. Estavam enfeitados de pencas de flores roxas.

É estranha essa mata. Ela produz ruído apenas durante a tempestade. Sente-se o aroma de terebintina e cânfora, lembrando em seguida o aroma do lírio-do-vale. Esse aroma é produzido por alguns cipós que me são desconhecidos.

Em nossa volta esvoaçam estranhas aves. Grandes borboletas, com as asas da largura de uma palma da mão humana, cintilam e resplandecem ao sol. Por cima de nós passam as barulhentas araras. Em meio aos ramos das árvores ouvem-se os melancólicos guinchos dos macacos bugios.

Andamos a passo, assobiando alegremente. Na frente vai o tropeiro Alfredo, depois eu, e no final o Dr. Biernacki.

Subitamente Alfredo detém o burro e grita: Para!

Detemo-nos.Alfredo desce do burro. Num segundo corta com o afiado facão um longo ramo de jequitibá e depois bate com toda a força num ponto escuro junto à estrada.

Somente agora nos damos conta do perigo. Eis que uma jararaca de quase dois metros de comprimento, uma das mais venenosas serpentes brasileiras, posicionou-se junto ao caminho, espreitando a presa.

O golpe foi violento. A cobra estava com o dorso quebrado.Alfredo aproximou-se da sua vítima e cravou o seu facão de meio metro de comprimento na mandíbula envenenada do réptil.

Descemos dos burros. O médico tirou o seu canivete. Fez um corte na pele abaixo do pescoço da cobra, que ainda se contorcia em convulsões mortais. Em seguida tirou a pele com tanta prática e facilidade como se se tratasse uma luva. Envolveu-a em folhas largas apanhadas por perto e guardou numa sacola. No decorrer de três minutos o perigo havia passado e a caçada estava terminada.

Cinco horas depois encontramos o primeiro povoado dos nossos colonos. É o ponto avançado daquela corajosa equipe que havia vindo para a conquista no eterno campo de batalha.

 

Pioneiros na selva secular

Em Águia Branca o camponês polonês está dando o testemunho das suas aptidões colonizadoras. Sem medo, ele se dirigiu à selva como conquistador vitorioso, e onde grassava o selvagem indígena, onde o frêmito das onça assustava o viajante – ele se estabeleceu em definitivo.

Penetra cada vez mais longe na mata tropical. Do amanhecer ao anoitecer ressoam os machados. Cintilam as foices e os facões. Nas amplas derrubadas ao longo do Rio Pancas, do Rio Claro e do Rio São José brilha avidamente o olhar do pioneiro.

E vão tombando os seculares cedros, imbuias, jacarandás e mognos. Nada será capaz de deter a sua caminhada. E por onde passa o seu pé, brotam pés de mandioca, murmuram as verdes plantações de cana-de-açúcar e de milho.

Novos transportes chegam sem parar. Os colonos recém-chegados são alojados em amplos barracões, que são limpos e bastante espaçosos. São divididos em três compartimentos, dois dos quais servem como dormitório e um como refeitório.

Nesse refeitório eu improvisei uma capelinha, onde pela manhã se reza a missa e à noite se faz a celebração. É também ali que se reúnem as crianças para as aulas de catecismo.

A permanência nos barracões se estende até que o colono construa uma casinha em seu próprio lote. No início essa casinha é geralmente muito modesta. Alguns troncos de palmeira fincados no chão, sobre os quais se estende uma coberta feita de folhas de butiá. Bancos de madeira de jacarandá, uma cama de fibras trançadas de jequitibá e estendidas sobre quatro estacas. Um caldeirão suspenso em arame e debaixo dele uma fogueira. Eis a cozinha improvisada.

Mais tarde, porém, o colono constrói uma casa de tábuas serradas. Na frente faz um alpendre e um pequeno jardim. As casas de Constante Samsel de Male Lecko, de Miguel Sanek da Polônia do leste ou de Boleslau Ruszczycki de Stanislawów poderiam muito bem ser erguidas em alguma pequena cidade e com certeza ninguém com elas se escandalizaria.

Logo após a vinda ao povoado o colono recebe um lote, que ele mesmo escolhe, geralmente em meio a conhecidos da Polônia ou da viagem, para assegurar a ajuda mútua. Após a entrega do lote e de um título provisório de propriedade, o colono recebe o plano do lote e a descrição dos seus limites, feita pelo agrimensor do governo.

Os lotes são de 25 hectares. As famílias maiores recebem dois lotes. Um lote custa 3.325 zlotys à vista ou 4.000 zlotys em prestações. No caso da compra do lote a prazo, a dívida é paga em seis anos, sendo a primeira prestação paga no início do quarto ano de permanência na colônia.

A esses preços adicionam-se ainda as despesas da viagem. Atualmente o preço de uma passagem de navio para pessoa adulta é de 950 zlotys, para crianças até dez anos – a metade desse valor, e para as crianças até 5 anos – a quarta parte da importância total. Esse preço paga a viagem da estação de estrada de ferro no lugar de residência na Polônia até o porto no Brasil, bem como a alimentação durante a viagem e nas paradas. A viagem do porto brasileiro até a colônia é paga pelo governo local.

Até o tempo da primeira colheita no próprio lote, a Sociedade Colonizadora assegura a alimentação da família, fornecendo-lhe a crédito artigos alimentícios e as ferramentas indispensáveis para se estabelecer na propriedade.

Cuida da saúde dos nossos pioneiros o Dr. Biernacki, de Lublin. É um médico ainda jovem, mas muito valoroso. Passa os momentos de folga junto ao microscópio, pesquisando os germes das doenças tropicais. Mas ele não dispõe de muitos desses momentos, porque de regiões distantes – às vezes de 100 ou 150 quilômetros – chegam os caboclos do mato para fazer consultas.

O calor não é tão insuportável como poderia parecer. Atualmente a temperatura chega aos 32º C ao meio-dia. Mas ainda vai ficar um pouco mais quente, principalmente em dezembro e em janeiro. Dizem, no entanto, que no ano passado também nesse período o calor não passou dos 38º C.

Atualmente, nos lotes realizam-se as semeaduras, naturalmente de forma muito primitiva. Caminha-se entre os troncos queimados e lança-se diretamente na cinza sementes de arroz, milho ou feijão preto. Com a plantação de cana-de-açúcar, mandioca, café, banana ou laranja procede-se de forma semelhante.

O trabalho mais difícil já ficou para trás. Era a derrubada do mato, que custou aos nossos muito suor e esforço. Apesar disso, alguns chegaram a derrubar três a cinco hectares.

Após a derrubada seguiu-se um descanso, à espera de que os galhos, os arbustos e os troncos secassem. Depois atearam o fogo. A queimada durou alguns dias. Enormes nuvens de fumaça espalharam-se no espaço. Os animais selvagens fugiam para o interior da mata. E aqueles que não conseguiram fugir pereceram nas chamas ou morreram sufocados pela fumaça.

Ia queimando tudo em volta. As chamas consumiam árvores que entre nós seriam valiosíssimas. Dos gigantes da floresta restaram apenas troncos enegrecidos. Os últimos moicanos da passada glória. Eles estendem tristemente os seus galhos queimados e queixam-se ao céu.

Paciência. O sentimento deve ceder à dura realidade. Aliás aqui a cada passo o homem luta com a natureza e ela com ele, vingando-se a cada passo. Ele, no entanto, sai vitorioso dessa luta.

Os sentimentos dos colonos locais são variados. O que mais os consome é a saudade. Eles sentem saudade daqueles que ficaram na terra natal. Sabem em que direção se encontra a Polônia. Por isso enviam até lá os seus pensamentos, como se fossem falcões.

O maior consolo deles é a canção polonesa. Eles cantam em casa. Junto a uma fogueira, reúnem-se para uma conversa comum e para cantar. E essa canção polonesa voa para a cintilante moldura do céu, para onde um cruzeiro de estrelas brilha do lado sul.

E quando se calam, cansados, a mata canta por eles, ecoando com uma queixa de agonia ou com vozes de saudade. O prolongado e soturno uivo dos graxains interrompe o irado berro da puma. Acompanha-os o berreiro de enormes corujas que, balouçando misteriosamente as asas, soltam os seus tristes piados. Após o que também a mata se cala. Surge um surdo silêncio.

É assim que em Águia Branca os pioneiros  poloneses passam os seus dias.

 

Aos pés do cruzeiro de mogno

Vivia ali o povo bastante feliz nessa eterna mata. Mas para a plenitude da felicidade faltava-lhe o Substituto de Deus, que o consolasse com a palavra  polonesa e a oração.

Começaram a fazer pedidos e solicitações. Veio então até eles o padre polonês. Eles o saudaram com alegria e com lágrimas nos olhos, por ter ele chegado recentemente da Polônia e por lhes trazer a saudação da terra natal.

Decidiram primeiramente levantar um cruzeiro de Cristo, lá no alto, na margem do Rio Claro. E a madeira devia ser da melhor qualidade possível, para que durasse séculos e testemunhasse a piedade do espírito polonês em terra estranha.

Cortaram por isso um mogno que crescia lá adiante na mata escura. Talharam dele uma cruz do Senhor como voluntários: Faustino Nietupski da paróquia de Zalewo, Estanislau Nasiadla, ambos os Ptak – João e Paulo, da comuna de Zalosie e Paulo Jacenczuk, da região de Lvov. E realizou-se a bênção solene.

Desponta uma estupenda manhã de domingo. A floresta e o mato cantam o hino matinal em honra do criador. Uma multidão de pássaros, com o seu barulhento clangor, entoa a sua saudação matinal. Bandos de verdes periquitos acompanham os tucanos, as arapongas e os pica-paus. Enormes borbolotas resplandecem com todas as cores do arco-íris. Das veredas da mata e das picadas aproximam-se palavras de cânticos piedosos.

Aparecem os primeiros do lado de Rio Claro. Vêm os Szablanek, os Sokolowski, os Kania, os Ptak.Tudo gente boa, forte e fibrosa, como aqueles troncos de cedro. Vêm guiados por Constante Samsel, um camponês prudente e muito confiante em si.

Aparecem dos lados do Pancas os Piekarski, os Karabin, os Sokolowicz, vigorosa estirpe dos Piasts. Das margens do Rio S. José aproximam-se os Ignatowski, os Grzeluk, os Siura e os Smorag, e muitos outros.

Reúnem-se no pátio, diante da casa da administração.

Primeiramente benzo três baldes de água, trazidos do Rio Claro.

Em seguida começo a aspergir o povo, que se concentra em volta, como se fosse na Polônia uma leira murmurejando com cereais variados. Cada um deles curva-se diante da majestade divina, bate no peito e a meia-voz murmura: “Por esta santa aspersão, ó Deus, perdoai o meu pecado!”

Em procissão, rumamos agora em direção ao cruzeiro. Ressoam cânticos comovidos suplicando a proteção divina, visto que a proteção deles é verdadeiramente apenas Deus. Destaca-se a voz do Samsel, que caminha solenemente à direita do padre. Ele entende de cânticos e de ritos religiosos, porque na Polônia foi cantor e sacristão.

E aproximaram-se do cruzeiro. O padre agachou-se sobre um tronco de imbuia e começou a ouvir a santa confissão. O Samsel entoou o Pequeno Ofício de Nossa Senhora. O povo se balançou e se lançou de joelhos, glorificando a Santa Virgem. Após a santa confissão foi instalado um pequeno altar campal. As moças começaram a trazer folhas de palmeira, flores de ipê e orquídeas selvagens e a enfeitar o altar e o cruzeiro.

Iniciam-se os ritos da bênção. O padre reza por muito tempo, de vez em quando recita mais alto as santas palavras latinas, depois estende os braços e faz o sinal da cruz sobre o cruzeiro. Depois caminha em volta do cruzeiro e dos quatro lados o asperge com água benta. A seguir faz o sinal da cruz e explica a importância desse momento solene.

– Santa cruz, nossa esperança única nesta terra estranha! – assim começou o seu discurso. As mulheres foram as primeiras a soluçar, mas também os homens enxugaram lágrimas sentidas.

Falou da fidelidade com que os antepassados deles se mantiveram junto à cruz e com esse sinal alcançaram vitórias:

– Erguestes este cruzeiro de mogno – continuou falando – mas fincai esta cruz também em vossos corações! Respeitai o Crucificado e os Seus santos mandamentos! Então Jesus Cristo também abençoará o vosso destino de peregrinos, as vossas famílias, o vosso patrimônio e vos dará a paz e a santa graça.

E todos sentiram uma dor no coração, a tal ponto que ninguém mais podia reter as lágrimas, que escorriam como aquelas grandes gotas da chuva brasileira.

Quando depois celebrei a santa missa, foi entoado o cântico “Santa Cruz”. E eles cantavam com tanto vigor que até as árvores e as palmeiras estremeceram com esse grandioso vendaval de vozes. Até os pássaros se calaram ao ouvir esse vigoroso vendaval de vozes que dos peitos poloneses se elevava rumo ao altar de Deus.

Já havia muito tempo tinha ecoado o “Ite missa est”, mas eles continuavam a cantar e a rezar aos pés do cruzeiro de mogno.

Ou aquela primeira celebração realizada a céu aberto no bosque de palmeiras!

O povo apinhou-se em volta do altar e prostrou-se diante da majestade divina como uma leira de vivas espigas que se dobra durante a colheita. O sol derramava os seus raios sobre esse povo que se prostrava aos pés do altar. Dourava essa leira de jaquetas cinzentas e aventais desbotados. Dois macaquinhos desceram do alto para os galhos inferiores e ficaram olhando para essa estranha solenidade. Olhavam ora para nós ora para si mesmos, coçando as cabecinhas e pensando o que tudo isso devia significar. Verdes papagaios, beija-flores e outros passarinhos de Deus esvoaçavam por cima do altar, como se quisessem prestar uma homenagem ao Filho de Deus.

Após a celebração houve um grande número de batizados. A água batismal lavava para a vida eterna as cabecinhas das criancinhas polonesas, nascidas nestas selvagens e seculares matas.

Realizavam-se animados casamentos, vários ao mesmo tempo, considerando que ali nunca havia um padre. Os que inauguraram a cerimônia foram o Boleslau Samsel e a Bárbara Saranczyk.

Boleslau, o filho mais velho do Samsel, já havia tempo estava à procura de uma esposa. Para isso andava pelas bandas do Rio Claro e do Pancas. Frequentava os ranchos e as cabanas. Finalmente ficou gostando da Bárbara. Ela era uma moça trabalhadeira, sadia e jovem, além de piedosa e respeitadora dos mais velhos.

– A Bárbara vai ser minha – disse ele consigo.

Os jovens combinaram e no dia seguinte vieram falar comigo. Acertamos algumas formalidades necessárias e iniciaram-se os preparatidos para o casamento. O
Boleslau foi até a vila nas margens do Rio Doce para fazer algumas compras. Fez uma longa viagem, porque foi preciso percorrer mais de 110 quilômetros. Ele caminhou três dias inteiros para um lado e outros três para a volta.

Na vila ele comprou o que era preciso. Aliança, um vestido branco de noiva para a Bárbara, uma corrente de contas brancas também para ela, algumas guloseimas e mais alguns artigos para o casamento.

Veio o domingo. Era um ensolarado dia de outubro, abafado e sufocante, visto que no Brasil é tudo ao contrário: quando entre nós é outono, lá é primavera; e quando lá é verão – entre nós é o inverno. Eis que nesse lindo dia primaveril começaram a reunir-se os vizinhos e amigos na casa dos Samsel. Os noivos saíam ao seu encontro e humildemente os saudavam e convidavam. E quando todos já estavam reunidos, ajaoelharam-se ambos diante dos pais e pediram a bênção. A mãe fez sobre eles o sinal da cruz com uma imagem santa e os molhou com a água que o padre tinha benzido alguns dias antes. E depois desatou a chorar. Nos demais presentes também brotaram lágrimas de emoção porque uma solenidade tão comovente se realizava naquele lugar distante.

Saíram de casa – todos a pé. Porque ninguém ali ainda tem um cavalo nem mesmo um miserável burro. Na frente caminhava solenemente o negro Sebastião e executava em sua sanfona animadas melodias. Porque ali também não é fácil arrumar música, embora seja um casamento de camponeses.

Quando saíram do mato, viram ao longe o santo cruzeiro que alguns dias antes haviam talhado de mogno.

Caminhando então ao lado dele, ajoelharam-se todos juntos, batendo humildemente no peito, porquanto o padre lhes havia dito que esse cruzeiro era o objeto mais santo de Águia Branca enquanto ali não fosse construída uma igrejinha.

Do barracão, onde por enquanto havia sido instalado o santo altar, já saía a procissão. Por isso os convidados do casamento se apressavam para a ela ainda se juntarem. Após a procissão teve início a santa missa. Os noivos ajoelharam-se sobre uma toalha vermelha na frente de todos. Rezavam fervorosamente para que o Deus misericordiosíssimo lhes enviasse abundantes bênçãos e a santa graça para a vida matrimonial que iriam iniciar.

Após a missa e o sermão, o padre entoou o “Veni Creator”. O velho Samsel continuou cantando olhando para o livrinho do padre, visto que conhecia bem o santo cerimonial.

Depois o padre falou aos noivos. Disse-lhes que fossem fiéis a Deus e que vivessem piedosamente nessa santa aliança matrimonial. E quando lhes disse que eles nunca mais veriam o seu torrão natal e que ali nessa terra estranha o Senhor Jesus lhes seria muito necessário, nem o mais duro dos homens deixou de se comover.

O restante da cerimônia realizou-se como na Polônia. Com a diferença de que o padre não tinha pluvial, de que não havia um aspersório e de que o termômetro marcava 38º C na sombra.

Depois o povo se espalhou amplamente no pátio diante do barracão. Ouviram-se salvas de revólver, cujo eco distante se espalhou pelas matas. Derravam-se no ar risos e vivas ao casamento que se elevavam fogosamente dos peitos robustos. O séquito do casamento ia voltando para as márgens do Rio Claro.

Na entrada da casa, a senhora Samsel saudava os noivos com sal e pão. Após o que o negro da sanfona tocou uma música animada e teve início a alegria contagiante das danças.

Os homens bebericavam aguardente de cana-de-açúcar. Um enorme garrafão ia passando de mão em mão, já pela terceira ou quarta vez. Os mais fracos já estavam aturdidos e por isso se abraçavam e conversavam animadamente.

E os jovens dançarinos redemoinhavam animadamente, lançando-se na dança obcecada, volteando, ajoelhando-se e sapateando ao som de alegres canções.

A senhora Samsel começou a convidar para a mesa. Os noivos sentaram-se no centro, e os demais, de ambos os lados deles, em companhia dos mais importantes convidados de Rio Claro.

Tomavam um caldo de papagaios verdes, lembrando um saboroso e nutritivo caldo de galinha, comiam carne de porco do mato e de aves silvestres. No final, bananas flambadas e mamões, frutas da região.

Depois continuaram a cantar e a divertir-se até o amanhecer. Em volta, o silêncio. Os animais selvagens pareciam ter desistido da sua caçada, os répteis de esconderam. Até as enormes mariposas noturnas pararam com as suas travessuras. Parecia até que havia silenciado toda a natureza para acompanhar com interesse o desenrolar daquele  primeiro casamento polonês naquela selvagem mata brasileira...

Durante a semana começaram a preparar o lugar para o cemitério. Derrubavam o mato, queimavam as árvores. E o cemitério era necessário, porque também debaixo do belo céu brasileiro as pessoas morrem. Há tão pouco tempo eles aqui se encontram, e já são tantos os túmulos...

Até agora haviam sepultado os mortos em lugares diversos. O jovem Casimiro Duda, de Wegrowiec, tinha sepultado o seu filho primogênito ao lado da casa, para satisfazer o desejo da mulher, que queria ter por perto o túmulo do seu filhinho. Outros mortos eram sepultados na colina, além das roças, na borda do mato.

E uma semana depois o cemitério já estava pronto. Realizou-se uma bênção solene daquele cemitério e daquela cruz de Cristo que foi colocada no seu centro – e dessa estranha terra brasileira, na qual tantos ossos poloneses ainda descansariam.

E esse cruzeiro é simples, até sem a imagem do Cristo morto, visto que aqui nada disso se pode comprar. Pobre como esse povo polonês que deve perambular pelo mundo em busca de pão.

E realizam-se as visitas pastorais das casas. De cabana em cabana, de rancho em rancho, andamos e abençoamos essa miséria, essa pobre miséria polonesa.

À sombra das palmeiras, diante do altarzinho doméstico, o povo se prostra diante de Deus. Recita prece após prece, com os lábios ressequidos, com todas as forças da alma crente, com o coração repleto de êxtase. E depois entoa os cânticos marianos, contemplando a enegrecida e doce face da Mãe de Czestochowa.

O povo daqui é bom, embora reunido de todos os cantos da Polônia, embora um e outro se tenha defrontado com o indiferentismo religioso. Essas matas virgens e essa contínua permanência na sua primitiva pureza criaram uma estranha atmosfera religiosa. E todos ali respiram essa atmosfera, que envolve também pessoas de outra religião, compatriotas que trazem os seus filhos para serem batizados e que pedem para serem recebidos no seio da Igreja.

Na missa matinal sempre há muitas crianças. E alguns dos moradores devem percorrer até a igreja vários quilômetros de caminho, através de uma picada aberta na mata virgem. Mas eles vêm. Igualmente à noite, para a devoção do rosário. Eles vêm até de lotes distantes. Aos pés de Maria eles derramam a sua saudade, a sua dor humana. E cantam a ladainha de Nossa Senhora com tanto entusiasmo como talvez não se veja na Polônia. Depois voltam às suas cabanas e ranchos com novas forças para o dia de amanhã.

Ao sopro desse espírito religioso brotam flores de verdadeiro amor cristão. As pessoas se reúnem em grupos e juntas derrubam a mata.

Se alguém – em consequência de diversas doenças tropicais – fica doente, outros executam o serviço no seu lote. Assim, ficou gravemente doente o colono Chudniekij – um ortodoxo. Apresentaram-se voluntariamente colonos poloneses e numa maca transportaram-no por alguns quilômetros até um posto de saúde.

Em Águia Branca já estão construindo uma igreja. O trabalho é organizado de tal forma que todos os dias oito colonos trabalham em turnos na construção do santuário. Além do trabalho, eles também não poupam dinheiro para esse objetivo. Se Deus quiser, em breve o santuário divino sob a invocação da Rainha da Coroa Polonesa já estará concluído.

E assim, à sombra do cruzeiro de mogno ressoa a glória do Senhor, e os mandamentos do Crucificado são zelosamente observados pelo povo polonês.

 

Almas no sertão

A minha pastoral envolve também os caboclos, filhos semisselvagens da floresta secular. Há um bom número deles em Águia Branca.

Perto das casas da administração da colônia surgiu uma novo povoado, por eles fundado. A vontade de ganhar dinheiro em diversos serviços na administração atraiu-os a essas plagas. Além disso, um bom número de caboclos reside nas margens dos rios, nas férteis planíceis e nos desfiladeiros.

Todos esses exóticos paroquianos são católicos, porque receberam o santo batismo na Igtreja católica. É uma tradição já antiga. A igreja pode estar distante duzentos quilômetros ou mais, mas o caboclo monta no seu cavalo e leva seu filho para ser batizado. Ele está preocupado sobretudo em adquirir novos compadres, que por força desse ato ingressam na família e com isso desempenham um importante papel.

Em Águia Branca realizaram-se muitos desses batizados de caboclos. Os nomes que eles dão são geralmente bastante estranhos: Heitor, Aristides, Thiotoin, Mustinga. Ocorrem também nomes estranhos como Berberura, e até Kirieleison. Da mesma forma os nomes de família são longos, às vezes até com acúmulo deles, em geral muito religiosos, como José Maria da Conceição Jesus dos Santos.

No que diz respeito a qualquer conhecimento religioso, eles não possuem nenhum. Sabem apenas que existe Deus, ou Jesus Cristo e Nossa Senhora. Afora isso, nada mais, nem que possuem uma alma imortal nem que existe uma vida após a morte. Excepcionalmente sabem rezar a Ave-Maria.

Eles vêm às celebrações por curiosidade. Gostam do canto eclesiástico. Gostam das cerimônias, de maneira especial dos ritos da santa missa. Comportam-se decentemente e ajoelham-se juntamente com os nossos. Ouvem com diligência e interesse o sermão, que é feito para eles logo após o sermão em polonês. Da santa confissão por enquanto eles ainda não participam, porque ainda não estão preparados.

Uma vez apenas um deles se encorajou a confessar-se, para o espanto dos companheiros. Ajoelhou-se.

– Bom dia. Como vai, padre? – iniciou ele a sua confissão.

Pedi que fizesse o sinal da cruz.

– Padre – explicou-me ele – eu não sei fazer o sinal da cruz, mas tenho um amigo que sabe.

E, sem me dar tempo para responder, já se afastou do confessionário, a fim de trazer aquele “amigo”. Ambos agora se ajoelham, e o amigo faz o sinal da cruz. Tudo com a melhor das intenções. Mas naturalmente eles não tinham nenhum pecado, porque até então nunca tinham ouvido falar disso.

No que diz respeito ao sacramento do matrimônio, apenas alguns deles o receberam. Os demais vivem à sua maneira. É difícil lhes explicar que assim não se pode viver. Às vezes demonstram grande espanto ao saberem da existência de tal prescrição. É que até agora eles julgavam que o casamento na igreja era feito apenas por ostentação e para garantir maior esplendor.

Agora são cada vez mais frequentes os casos de eles virem a Águia Branca para casar na nossa capela. Só que essa “delegação” acarreta uma séria dificuldade. É preciso anotar os nomes e enviar um mensageiro especial ao pároco em Colatina, ao qual essa área ainda está subordinada. É uma boa distância – 220 quilômetros a pé. O mensageiro volta trazendo a “delegação”. Mas então se verifica que o pároco trocou os nomes. Escreveu que Ana deve casar-se com José, em vez de João. É uma grande dúvida, e às vezes o mensageiro tem que enfrentar uma nova viagem, fazendo penitência pelo descuido do pároco.

Ultimamente até duas polonesas se casaram com caboclos. Eu tentei fazer com que elas mudassem de ideia. Mas isso de nada adiantou, já que o temperamento e o encanto desses “don juans” do mato tinham conquistado os corações delas. Aliás um dos pretendentes disse claramente que me mataria se eu me opusesse. E sem dúvida ele o teria feito, porque não se pode duvidar da palavra de um caboclo. E eu ainda gostaria de ver mais uma vez a minha querida Poznan... Por isso desisti desses inúteis esforços e cedi.

Eles também não chamam o padre para assistir os doentes. E ficam extremamente admirados quando se vai sem ser chamado. Assustados, perguntam quanto isso vai custar. Alguns deles também têm a supersticiosa convicção de que, depois que o padre ungiu o doente, ele tem de morrer nas próximas seis horas. Por isso diziam que me chamariam quando alguém tivesse dificuldade para morrer.

Apesar disso atribuem aos óleos santos um poder curativo. Certa noite um indivíduo entrou na minha residência e me acordou. As portas e as janelas ficam abertas dia e noite, porque, em razão do grande calor, de outra forma não se pode dormir. Eu abri os olhos, assustado. Diante de mim se encontrava um caboclo vestindo um capote escuro, com um facão e um grande revólver na cintura. Quando me acalmei, ele amigavelmente bateu nas minhas costas e pediu que lhe desse pelo menos um pouquinho de óleo santo, porque um filho dele estava gravemente doente.

Muitas vezes, antes da lua cheia eles trazem vacas para serem bentas. Eles acreditam que isso ajuda muito e que os animais nunca mais adoecem.

O pequeno Tonho traz um burrinho, já quase morrendo, com o pedido de que o animalzinho viva, e por muito, muito tempo. Após uma breve bênção eles voltam para casa satisfeitos, dizendo que o Padre Inácio é amigo dos caboclos.

Os caboclos me visitam cada vez mais. Alguns deles encontram um padre pela primeira vez na vida, por isso querem vê-lo de perto.

Certa vez veio o Pereira da Silva, em companhia da sua negra esposa, com um cachimbo na boca.

– Padre – disse amavelmente, batendo-me nas costas. – O senhor tem que ir comigo e expulsar da minha roça as formigas que destroem as plantações.

Fui com eles. Com água benta borrifei abundantemente as plantações, toda a propriedade, e depois todos se sentaram agachados diante de um grande formigueiro de saúva – uma graúda e voraz formiga brasileira.  Eu me ajoelhei, suplicando a Deus que afastasse deles essa praga.

E parece que aconteceu um milagre, porque cinco dias depois veio galopando o Pereira da Silva, trazendo a notícia de que as formigas tinham sumido.

A novidade espalhou-se logo pela redondeza. Já no dia seguinte vem um cidadão de pele achocolatada e começa indagando:

– Você é o padre das formigas? – Prepare-se e venha comigo, porque na minha propriedade apareceram formigas!

Depois disso, de todos os lados vinham delegações de caboclos com o mesmo pedido. Se as minhas orações e bênçãos ajudaram a todos, não sei, porque alguns dias depois deixei a colônia.

Aparece o sorridente Faustinho, com um lenço branco na cabeça e segurando uma sanfona, em companhia de um amigo. É uma delegação de Rio Verde, um pequeno povoado distante 70 quilômetros de nós.

– Padre, venha conosco e molhe com água benta um jovem casal que se ama como um par de rolinhas e faça para eles um casamento do tipo daquele que os poloneses fazem.

Numa outra ocasião, vem o Miranda com o filhinho, pedindo que eu vá até o povoado Córrego Salvador. É uma longa distância, e viajamos várias horas em lombo de burro até chegarmos à sua choupana.

Essa choupana era feita de troncos e coberta com folhas de palmeira. Ali o meu amigo também preparou um lugar para eu dormir. Quatro estacas fincadas no chão, ligadas com cipós, sobre isso um pouco de palha do mato e... a cama estava pronta.

Fomos dormir tarde, porque foi preciso falar muito para satisfazer a curiosidade daqueles filhos da floresta secular. E depois fiquei sem saber como me deitar, porque um grupinho de curiosos ficou observando através das grandes aberturas na parede como eu me ajoelhava, como rezava. Visto que não convinha tirar a roupa, deitei-me do jeito como estava e caí no sono dos justos.

Na manhã seguinte acordei cedo, porque alguém estava pegando no dedão do meu pé, para depois fugir às pressas. Era a pequena Rili, a filhinha de sete anos do dono da casa, que queria verificar se o padre tinha dedos nos pés como as outras pessoas, porque nunca na vida tinha visto um padre.

Por volta do meio-dia faço diante da cabana uma solene celebração, batizo todos os filhos do Miranda, abençoo o matrimônio de sua filha Mina com o negro Gonçalves. Depois benzo um cruzeiro, que o Miranda havia erguido a exemplo dos poloneses de Águia Branca. Como não tinha uma imagem de Cristo, colocou no cruzeiro um galo recortado de uma tábua.

E assim eu passei viajando por essas matas virgens para visitar os caboclos, de povoado em povoado, em companhia deles. E acostumei-me com os facões de guerra e as longos revólveres dos meus companheiros. E não me admirava mais com os trajes deles e com as enormes esporas nos pés descalços.

E dormíamos sob o teto da mesma cabana. Comíamos de uma só tigela o feijão e a carne seca. Juntos também cantávamos as melancólicas canções junto à fogueira, nas noites claras de luar.

Eu lhes falava muito de Deus, que é o Criador e o Senhor das matas e das florestas. E lhes ensinava as santas orações. E eles contraíam alianças matrimoniais e traziam seus filhos pequenos e adultos, para que a água batismal purificasse as suas cabeças no santo sacramento da vida.

Assim se espalhava o Reino de Deus  na floresta selvagem. Assim reviviam as almas esquecidas do sertão.

 

Grande borrasca

Estavam chegando ao fim os dias da minha permanência em Águia Branca, estavam chegando ao fim as viagens pastorais em meio às matas virgens, ao norte de Rio Doce. A vida religiosa estava de alguma forma organizada, o fundamento das futuras paróquias polonesas havia sido colocado.

Vieram os maravilhosos dias da primavera. Os rios, as matas, as montanhas – tudo recendia a primavera. As gigantescas sapucaias cobriram-se de folhas novas, vermelhas como rubis. Floresceram os ipês, as perobas, as graúnas. Cálices de flores brancas como a neve vizinhavam com flores carmesins, violetas e amareladas. Flores de orquídeas cobriam todas as forquilhas e corcovas das árvores, onde quer que se acumulasse qualquer depósito de umidade. Aquecidos pelo sol tropical, resplandeciam rolos de filodendros, que descem ao chão numa fileira única, semelhando cortinas japonesas.

Maravilhosas araras – grandes papagaios com penas que lembram todas as cores do arco-íris, tucanos, pica-paus, arapongas e pequeninos beija-flores – toda essa multidão de pássaros cantava, tagarelava, alegrava-se com a primavera.

Nos lotes e nas colônias surgiu o verde das plantações de feijão preto, de arroz e de milho. Cresciam exuberantes os jovens pomares de laranja e as plantações de café. As galinhas e os marrecos cuidavam dos seus filhotes. O colono descansava após o seu difícil e penoso trabalho, e o seu olhar se alegrava ao contemplar esses frutos do seu trabalho e da ajuda divina.

Então um cavaleiro chegou trazendo a notícia de uma grande revolução no Brasil. Alguns estados, sentindo-se prejudicados pelas últimas eleições presidenciais, revoltaram-se contra o governo central. O país todo foi envolvido por uma sangrenta borrasca.

Destacamentos armados de voluntários e de militares do vizinho estado de Minas Gerais começaram a entrar no território do nosso estado do Espírito Santo. E alguns destacamentos de revolucionários conseguiram até romper a frente do exército do governo e através de trilhas nos matos avançavam em direção à capital. Não demoraria muito para passarem pelas colônias polonesas.

Fez-se o pânico. Tanto mais que os caboclos abandonavam as suas choupanas, escondendo-se com suas famílias e seus pertences nas impenetráveis brenhas da mata virgem.

As mulheres começaram a chorar e a lamentar-se. Mas também os homens foram tomados pelo medo, porquanto nunca antes haviam vivenciado tal borrasca. Naquele mesmo dia veio galopando um sujeito de cara não muito amiga. Tendo-se apresentado ao Dr. Biernacki, administrador provisório da colônia, exigiu que lhe fossem imediatamente entregues todas as armas que se encontrassem em posse dos colonos, bem como um destacamento de voluntários poloneses.

De nada adiantaram as justificativas de que as armas não podiam ser entregues, porque um colono que mora no mato sempre tem necessidade de uma arma. De que os poloneses – como estrangeiros – não podiam intrometer-se nas lutas políticas internas. Tudo em vão. Esse cidadão, um oficial da reserva, ameaçava com um revólver e com um ataque noturno contra a colônia.

No final, entretanto, prevaleceu nele a chama da nobreza, tão característica de todo brasileiro. De repente desistiu de insistir nas exigências. Ao partir, pediu-me apenas uma oração pela causa do governo. Depois, na frente do seu destacamento, saiu a galope em direção ao mato.

Graças a Deus, os destacamentos dos revolucionários desviaram-se da nossa colônia. Mas avançavam com incrível rapidez, tendo travado não longe de nós algumas lutas importantes, como por exemplo em Baixo Guandu, onde o sangue fraterno jorrou em abundância.

Eu pude então partir tranquilamente para continuar visitando as colônias polonesas no Espírito Santo.

Viajo em companhia do Dr. Biernacki, que quer fazer-me companhia até Colatina. Chove a cântaros. Por isso os nossos burros pisam cuidadosamente no barro molhado. Vai anoitecendo, e nós ainda viajando. Por sorte os numerosos vaga-lumes, fosforescendo com as suas luzes verdes, iluminam o nosso caminho. Finalmente chegamos à colônia Monte Claro. Assim os colonos batizaram o novo povoado, em honra de Nossa Senhora de Monte Claro. A água desce em jorros da nossa roupa e dos burros. Levamos cinco horas para viajar aqueles 26 quilômetros.

No dia seguinte organizamos uma celebração. Boleslau Ruszczycki, de Stanislawów, estudante de veterinária e chefe de escoteiros, atualmente colono-conquistador, construiu uma capelinha de madeira colorida. Ali se realizavam os santos ritos.

Desponta uma maravilhosa manhã. O sol abrasador seca os caminhos e as poças. De todos os lados se aproximam os nossos. Eles vêm dos distantes picadões entoando cânticos piedosos.

Aproximam-se coletivamente dos santos sacramentos. Visto que não há uma cadeira, ouço as santas confissões sentado num tronco de palmeira. Segue-se a bênção da água do Rio Pancas e, por falta de aspersório, borrifo a água benta com uma flor de palmeira butiá.

Depois a santa missa. O povo se apinha em volta do altar improvisado como se fosse uma leira de trigo lá na nossa terra e se lança de joelhos diante da majestade divina. Cânticos marianos brotavam dos lábios dos fiéis um após outro. Eles se misturavam à magia primaveril e se elevavam ao céu ensolarado, indo até a porta do céu.

Após a missa e o sermão, uma breve prosa com os colonos de Monte Claro. Depois, ainda um concerto polonês de gramofone, e continuamos a viagem.

Até Colatina são ainda 80 quilômetros. Por isso apressamos as nossas orelhudas montarias, sem nos determos em nenhum lugar durante a viagem. À noite chegamos a Aldeamento dos Índios. Estávamos terrivelmente cansados. Apesar da noite, banhamo-nos nas águas quentes do Rio Pancas e, tendo-nos recomendado à proteção da Virgem de Monte Claro, adormecemos com o sono dos justos.

Logo ao amanhecer, seguimos adiante. A caminho encontramos um destacamento de revolucionários. Eles cantam e agitam lenços vermelhos. Informam-nos que a revolução saiu vencedora.

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